quarta-feira, 19 de abril de 2017

Rapadura mofada


Em 1946, o Brasil ainda sentia o reflexo da Segunda Guerra Mundial - que terminara um ano antes - e eu, aos seis anos de idade, já enfrentava suas consequências, sem saber porquê. A falta de alimentos era voraz e as famílias tinham permissão para comprar alimentos na delegacia, cujos policiais anotavam, numa caderneta, o que era vendido diariamente. Açúcar e sal, que hoje são encontrados facilmente em qualquer supermercado, naquela época tinham um custo alto e uma aparência nada agradável.

Para adoçar os alimentos, usávamos o picomã, que mais parecia uma rapadura quebrada e mofada e, para salgar a comida, a substância não era branca nem refinada, como atualmente. Ainda assim, filas se formavam para a compra daqueles produtos. Foi uma época de tanta privação, que aprendi, na marra, o que é Economia. Não sou de grandes gastos e reaproveito desde os alimentos até móveis, que reformo ou transformo em outros objetos. Sem contar que as embalagens eram de papel e se deterioravam mais facilmente do que o plástico, contribuindo com a natureza.


Fui criado numa casa grande, cujo quintal era cheio de árvores frutíferas e plantações de temperos e leguminosas. Comíamos carnes apenas aos domingos, quando minha mãe matava animais domésticos que ela criava. O café era também produzido em casa e o leite, era fresco, trazido todos os dias pelo leiteiro que aos berros, nos avisava para enchermos o caneco. Os produtos industrializados eram raros e não havia geladeira. Havia a desvantagem de se perder os alimentos constantemente, pela falta de refrigeração, mas tinha o lado bom de ter comida nova no almoço e no jantar, todos os dias.


Meu pai, na casa onde morávamos
É, o mundo mudou bastante, ficou mais prático e mais confortável. Os guarda-comida foram substituídos por armários planejados e o fogão à lenha deram lugar a parafernálias que cozinham sem fogo. Já não precisamos mais da cisterna para obtenção de água e o leite é facilmente encontrado nos supermercados. Mas, sinto falta do calor humano que a cozinha despertava, nos meus tempos de criança. Era ali que nos alimentávamos, de comida e de carinho. Quando meu pai morreu, fiquei incumbido de desmanchar o fogão à lenha para dar lugar ao equipamento, à gás, que havíamos comprado para a minha mãe, já idosa. Ele era exigente e não aceitava comida sem fumaça. Já para ela, foi um alívio não ter mais que ficar rachando madeira para cozinhar.

Desmanchar o fogão à lenha não foi um ato simples. A cada tijolo tirado, eu relembrava os momentos que passei, ao lado dos meus pais e irmãos, esquentando as mãos na fumaça durante o inverno.  O barulho da madeira, sendo esturricada, é um som que traz de volta o meu passado. Desfazer daquele trombolho, que ocupava tanto espaço, causou-me um enorme vazio. Era como se eu estivesse desrespeitando o meu pai. Dentro de mim eu chorava, relembrando quantas vezes eu apanhei dele, mas o sentimento não me causava dor e sim lembranças, saudades. Era apenas um fogão, já obsoleto, mas com um significado inigualável. Era a personificação da minha felicidade em família. Foi por isso que, silenciosamente, eu pedia perdão ao meu pai pelo desmanche, a cada tijolo despreendido. Era um sinal do meu respeito, do meu amor por aquele homem que tanto me ensinou, que tanto me amou. Não era só um fogão: era uma vida!

Abraços,

Paulo