Em 1946, o Brasil ainda
sentia o reflexo da Segunda Guerra Mundial - que terminara um ano antes - e eu,
aos seis anos de idade, já enfrentava suas consequências, sem saber porquê. A
falta de alimentos era voraz e as famílias tinham permissão para comprar
alimentos na delegacia, cujos policiais anotavam, numa caderneta, o que era
vendido diariamente. Açúcar e sal, que hoje são encontrados facilmente em
qualquer supermercado, naquela época tinham um custo alto e uma aparência nada
agradável.
Para adoçar os alimentos,
usávamos o picomã, que mais parecia uma rapadura quebrada e mofada e, para
salgar a comida, a substância não era branca nem refinada, como atualmente.
Ainda assim, filas se formavam para a compra daqueles produtos. Foi uma época
de tanta privação, que aprendi, na marra, o que é Economia. Não sou de grandes
gastos e reaproveito desde os alimentos até móveis, que reformo ou transformo
em outros objetos. Sem contar que as embalagens eram de papel e se deterioravam
mais facilmente do que o plástico, contribuindo com a natureza.
Fui criado numa casa grande,
cujo quintal era cheio de árvores frutíferas e plantações de temperos e
leguminosas. Comíamos carnes apenas aos domingos, quando minha mãe matava
animais domésticos que ela criava. O café era também produzido em casa e o
leite, era fresco, trazido todos os dias pelo leiteiro que aos berros, nos avisava
para enchermos o caneco. Os produtos industrializados eram raros e não havia
geladeira. Havia a desvantagem de se perder os alimentos constantemente, pela
falta de refrigeração, mas tinha o lado bom de ter comida nova no almoço e no
jantar, todos os dias.
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| Meu pai, na casa onde morávamos |
É, o mundo mudou bastante,
ficou mais prático e mais confortável. Os guarda-comida foram substituídos por
armários planejados e o fogão à lenha deram lugar a parafernálias que cozinham
sem fogo. Já não precisamos mais da cisterna para obtenção de água e o leite é
facilmente encontrado nos supermercados. Mas, sinto falta do calor humano que a
cozinha despertava, nos meus tempos de criança. Era ali que nos alimentávamos,
de comida e de carinho. Quando meu pai morreu, fiquei incumbido de desmanchar o
fogão à lenha para dar lugar ao equipamento, à gás, que havíamos comprado para
a minha mãe, já idosa. Ele era exigente e não aceitava comida sem fumaça. Já
para ela, foi um alívio não ter mais que ficar rachando madeira para cozinhar.
Desmanchar o fogão à lenha não
foi um ato simples. A cada tijolo tirado, eu relembrava os momentos que passei,
ao lado dos meus pais e irmãos, esquentando as mãos na fumaça durante o
inverno. O barulho da madeira, sendo esturricada,
é um som que traz de volta o meu passado. Desfazer daquele trombolho, que
ocupava tanto espaço, causou-me um enorme vazio. Era como se eu estivesse
desrespeitando o meu pai. Dentro de mim eu chorava, relembrando quantas vezes
eu apanhei dele, mas o sentimento não me causava dor e sim lembranças, saudades.
Era apenas um fogão, já obsoleto, mas com um significado inigualável. Era a
personificação da minha felicidade em família. Foi por isso que,
silenciosamente, eu pedia perdão ao meu pai pelo desmanche, a cada tijolo
despreendido. Era um sinal do meu respeito, do meu amor por aquele homem que
tanto me ensinou, que tanto me amou. Não era só um fogão: era uma vida!
Abraços,
Paulo
